24.6.06

O RApaz do Violino III

Emigrara já há algum tempo, acalentando sonhos de esperança. Deixara a sua Ucrânia, a família e o respirar tão próprio daquele país de Leste. Após uma saga interminável à procura de emprego, fartara-se dos dias passados ao sol nos andaimes dos prédios em obras e da tortura das filas dos semáforos. Agora vivia da música e tocava de manhã até à noite. Morava nas águas furtadas de um prédio velho e sem elevador, onde o estuque descascava das paredes e as aranhas construiam teias fabulosas nas vigas do telhado.
Tudo para ele era novo naquela cidade estrangeira. Desde as pontes erguidas para ligar as duas margens, ao casario multicolor que se erguia colina acima. Era estranha a luz intensa da manhã e a luz vermelha do poente. As cores do rio esverdeado e turvo, que corria até à barra por entre margens cavadas, eram diferentes cada dia. A cidade parecia‑lhe carregada de histórias e recordações. Transbordante de memórias que não as suas, mas daquela gente que passava em magote pela rua larga a caminho do trabalho, daqueles que, da janela o viam passar com o violino às costas e de tantos outros que ali viviam e de quem desconhecia a existência.Eram estranhos os rumores que se ouviam nas esquinas, diferentes os gritos perdidos do fim de tarde, os murmúrios e os vultos que passavam. Perdia-se nos sons daquela língua estrangeira, na diferença dos cheiros e dos rostos. E nas horas de maior solidão, quando olhava o futuro e só via névoas indistintas, tocava músicas tristes, carregadas de saudade. E o violino consolava-o contando-lhe histórias da aldeia que deixara para trás, onde todas as mulheres tinham longos cabelos loiros. No silêncio cortado pela música, escorriam-lhe lágrimas invisíveis de tristeza e o coração apertava-se num gemido surdo. E então, cansado, adormecia sem notar.

21.6.06

O Rapaz do Violino- II

Era leve e gracioso, polido e brilhante. Tinha-lhe sido oferecido de presente quando fizera apenas seis anitos. Desde então eram companheiros inseparáveis de andanças e desventuras. Conhecia-lhe cada curva, cada corda, cada milímetro do braço. O que tocava, era muito mais do que apenas o vibrar das cordas, mais ainda do que o executar de peças complicadas e difíceis. O violino era a sua voz, o prolongar dos seus sentidos. Era a ponte que lhe permitia comunicar naquele país estranho onde as frases e palavras se enrolavam em tropel numa miscelânea de sons de difícil compreensão.
Ajustou o pano ao pescoço, à falta de almofada melhor e experimentou o som, ajustando as cravelhas. Encostou o violino e, em posição, fez deslizar o arco sobre as cordas. Fechou os olhos e sentiu a música que lhe fluia pelo corpo. Nota após nota, invadia-o uma infinita sensação de paz e o tempo parecia cessar. A sua alma e a do violino fundiam-se numa só e a música pairava à sua volta e insinuava-se nos ouvidos daqueles que passavam.
O som pairava no ar, como um chamamento. Atraía os comerciantes para a soleira da porta e enfeitiçava as pessoas que com o avanço da manhã, iam enchendo a rua.
À volta do violinista ia-se formando um magote curioso, que em silêncio ouvia a música de olhar extasiado e admirava a fusão perfeita entre o rapaz e o instrumento. E quando terminou a primeira melodia ele abriu os olhos, lançou um olhar ao monte de moedas já mais composto e preparou-se para embalar de novo noutra onda.

20.6.06

O Rapaz do Violino- I

Vinha apressado, caminhando ligeiro pelas ruas da Baixa ainda vazias. Entretinha-se a ouvir o ruído das botas, em passo rápido, nos paralelos do passeio, na calçada empedrada, no alcatrão das ruas desertas. Ruas desconhecidas para ele, rapaz vindo de longe, mas estranhamente acolhedoras. Pareciam-lhe todas iguais, estreitas e escuras, com os prédios encavalitados uns nos outros, as varandas suspensas sobre a sua cabeça. Vielas íngremes, ruas estreitas que se emaranhavam e confundiam, cruzando-se aqui, terminando além em algum beco sem saída.
Seguiu até à rua principal, larga e empedrada, cortada ao trânsito, por onde os carros estavam impedidos de andar. De cada lado, alinhavam-se as montras tentadoras de lojas e cafés, ainda com os estores descidos, àquela hora matutina. O movimento era pouco e a confusão ainda não se instalara. Pela rua deambulavam apenas comerciantes atarefados e estudantes de cara ensonada e mochila às costas.
Olhou em volta à procura do melhor lugar. Decidiu-se por ficar de um dos lados do passeio, onde não fosse engolido pelo tumulto da multidão que não tardaria a invadir a rua. Pegou na caixa que trazia pendurada às costas e pousou-a no chão. Ao lado, colocou a boina de flanela com alguns cêntimos dispostos à vista. Arregaçou as mangas e agachado, abriu a caixa devagar, obedecendo a um ritual quase mágico que há muitos anos praticava. Empunhou o arco de crina e apertou as cordas até ficarem esticadas. Cobriu-as depois com uma camada de resina, de uma ponta à outra. Assim, o som sairia mais fluido, e o próprio timbre seria diferente. Pousou-o junto da boina e segurou entre as mãos o violino.

18.6.06

A Árvore de Cristal I - a semente e o despertar

Quando espreitou, na terra dura e estéril, era rebento
frágil inseguro que desponta ao de leve e lentamente se espreguiça
à luz embaciada
coada pelas nuvens que nunca choravam.
Abriu-se para o desconhecido que era a terra seca e mortiça.
Nasceu de uma semente trazida de longe, de outro universo
embalada e protegida no colo do vento fogoso
que dançava em liberdade pelo mundo e, caprichoso,
moldava em dunas sensuais
a imensidão das areias do deserto.

Germinou da semente viajada
caída na terra árida
Exausta pelo cansaço da sua saga pelo cosmos.
Brotou na terra estéril onde outras sementes fatigadas
caíram sem forças derreadas
e em pó se dissolveram.

Derrotadas.


Alongou-se num único ramo fino e frágil
ensaiando uma carícia meiga ao céu imenso que a cobria.
Estendeu, curiosa, o seu ser leve para o alto.
( as nuvens pesadas passavam e passavam)
Soltou-se do ventre da terra
livre pura cândida
num rasgo de vontade divina.
Indomável e sereno.
Exalou no ar pesado que a encerrava
o seu grito de ousadia,
o clamor arrojado
que a enraizava às areias do deserto,
bramido feroz de rebeldia.

Era ela.
Esmero magistral da criação
Fragilidade força beleza
Celeste iluminada
Misteriosa perfeição.

Era ela.
E os ramos que lentamente se soltavam
Do abraço morno em que se escondiam
Desenrolavam no céu um rendilhado de luz
Prodigiosamente cintilantes.

Era ela.
A prometida.

O rebento de cristal.