14.9.06

O desenhador de mesas

A minha mesa, na escola, é quinta da fila da janela. Confesso que tenho por ela uma afeição especial. Sei que não fui a primeira e não hei-de com certeza de ser a última a sentar-me nesta carteira rabiscada. Mas este ano, pelo menos durante as aulas da manhã, é ela a minha carteira, onde me sento sempre. É pequena de mais, e tão velha que deve fazer parte da mobília resistente desde os primeiros tempos desta escola como tal. É muito pequena, tão acanhada que as minhas pernas mal cabem debaixo do tampo verde. É tão acanhada que, invariavelmente, acabo por desistir de tentar encaixar as pernas debaixo do tampo e as cruzo à chinês em cima da cadeira. A maior parte das vezes a professora olha para mim com o sobrolho franzido, e eu encolho os ombros, resignada a esta sorte de me sentar à chinês. A minha carteira é pequena e acanhada, e realmente é difícil acomodar as pernas debaixo do tampo verde sem ficar com um formigueiro latente nos músculos e os pés dormentes.
A minha sala pauta-se pela diversidade de carteiras. Há as brancas, novas, grandes e relativamente pouco rabiscadas, nas filas da frente. Recambiadas para as filas de trás estão as verdes, pequenas e acanhadas. Há dias em que quando chego lá desapareceu mais uma carteira branca, certamente raptada por alguém de outra turma farto da ginástica do encolher de pernas. Lá resmungo eu, uma vez mais contra o sumiço misterioso das carteiras. E lá diz a professora que há-de falar com alguém para parar a dança das carteiras entre as salas. Mas até hoje nenhuma delas voltou. E de vez em quando, ao princípio da tarde, damos por mais uma lacuna. São sempre as carteiras brancas, novas e grandes. As verdes nunca desaparecem. E olham para nós irredutíveis, reflectindo a constatação evidente de que vão ficar ali até a es cola deixar de ser escola. Mas eu duvido. Tenho quase a certeza de que até aí elas vão continuar a oferecer o tampo verde a quem nelas quiser tentar encaixar as pernas. Ou a quem esteja disposto a sentar-se à chinês.
O tampo da minha carteira é uma tela verde. Por mais desenhado que esteja, há sempre espaço livre para cada um carimbar a sua marca. A carvão, a tinta, a esferográfica azul ou preta ou por vezes cor de laranja, até mesmo com canetas de gel de cheiros variados. Canela, frutos silvestres, pipoca. Até hoje ainda não satisfiz o desejo curioso de perceber como é que um fio castanho de tinta pode ter em si o perfume tão característico da canela. Como pode despertar debaixo da língua o sabor de leite creme. Sensaçaõ muitas vezes incoveniente. Leite creme não cai bem com assimptotas, com poetas românticos ou verbos irregulares. E acompanhado de funções irracionais pode mesmo causar indigestão. Por isso há algum tempo deixei de escrever com canetas de gel, que escorrem para as linhas em branco dos meus cadernos pretos cheiro a canela, a frutos silvestres ou pipocas. Mas afinal, as canetas têm tinta ou têm canela? Se têm tinta, como é que nela se dissolve a essência da canela? Talvez seja tinta comestível...Mas se acumulado na carga da caneta estiver canela com o seu aroma intrínseco, como é que ela escreve? Misterioso, no mínimo....