14.9.06

O Rapaz do VIolino IV

O dia escorria pela rua, hora após hora e o monte de moedas ia crescendo sobre a boina de flanela. E quando a noite caiu, baixando o manto de escuridão sobre a cidade, a rua ficou deserta. Os comerciantes começaram a baixar os estores das montras das lojas, o rapaz desencostou do peito o violino e guardou-o, assim como ao pano que lhe servia de almofada. Desapertou as cordas do arco e recolheu o monte considerável de moedas no bolso das calças. Fechou a caixa, pôs o violino às costas e desceu pelas ruas, vazias àquela hora, para o passeio do costume. Encaminhou-se para o rio, para o porto, seu abrigo, repisando as mesmas ruelas de todos os dias.
O seu espírito vagueava pela noite, escura e densa, e os olhos não ficavam cegos na escuridão. Sentiu o bafo morno da cidade e a brisa leve de Junho arrepiou-lhe os cabelos do pescoço.
A noite também existe na Ucrânia.

O desenhador de mesas

A minha mesa, na escola, é quinta da fila da janela. Confesso que tenho por ela uma afeição especial. Sei que não fui a primeira e não hei-de com certeza de ser a última a sentar-me nesta carteira rabiscada. Mas este ano, pelo menos durante as aulas da manhã, é ela a minha carteira, onde me sento sempre. É pequena de mais, e tão velha que deve fazer parte da mobília resistente desde os primeiros tempos desta escola como tal. É muito pequena, tão acanhada que as minhas pernas mal cabem debaixo do tampo verde. É tão acanhada que, invariavelmente, acabo por desistir de tentar encaixar as pernas debaixo do tampo e as cruzo à chinês em cima da cadeira. A maior parte das vezes a professora olha para mim com o sobrolho franzido, e eu encolho os ombros, resignada a esta sorte de me sentar à chinês. A minha carteira é pequena e acanhada, e realmente é difícil acomodar as pernas debaixo do tampo verde sem ficar com um formigueiro latente nos músculos e os pés dormentes.
A minha sala pauta-se pela diversidade de carteiras. Há as brancas, novas, grandes e relativamente pouco rabiscadas, nas filas da frente. Recambiadas para as filas de trás estão as verdes, pequenas e acanhadas. Há dias em que quando chego lá desapareceu mais uma carteira branca, certamente raptada por alguém de outra turma farto da ginástica do encolher de pernas. Lá resmungo eu, uma vez mais contra o sumiço misterioso das carteiras. E lá diz a professora que há-de falar com alguém para parar a dança das carteiras entre as salas. Mas até hoje nenhuma delas voltou. E de vez em quando, ao princípio da tarde, damos por mais uma lacuna. São sempre as carteiras brancas, novas e grandes. As verdes nunca desaparecem. E olham para nós irredutíveis, reflectindo a constatação evidente de que vão ficar ali até a es cola deixar de ser escola. Mas eu duvido. Tenho quase a certeza de que até aí elas vão continuar a oferecer o tampo verde a quem nelas quiser tentar encaixar as pernas. Ou a quem esteja disposto a sentar-se à chinês.
O tampo da minha carteira é uma tela verde. Por mais desenhado que esteja, há sempre espaço livre para cada um carimbar a sua marca. A carvão, a tinta, a esferográfica azul ou preta ou por vezes cor de laranja, até mesmo com canetas de gel de cheiros variados. Canela, frutos silvestres, pipoca. Até hoje ainda não satisfiz o desejo curioso de perceber como é que um fio castanho de tinta pode ter em si o perfume tão característico da canela. Como pode despertar debaixo da língua o sabor de leite creme. Sensaçaõ muitas vezes incoveniente. Leite creme não cai bem com assimptotas, com poetas românticos ou verbos irregulares. E acompanhado de funções irracionais pode mesmo causar indigestão. Por isso há algum tempo deixei de escrever com canetas de gel, que escorrem para as linhas em branco dos meus cadernos pretos cheiro a canela, a frutos silvestres ou pipocas. Mas afinal, as canetas têm tinta ou têm canela? Se têm tinta, como é que nela se dissolve a essência da canela? Talvez seja tinta comestível...Mas se acumulado na carga da caneta estiver canela com o seu aroma intrínseco, como é que ela escreve? Misterioso, no mínimo....

12.9.06

as palavras

E depois de tudo, a escuridão.
E eu escrevo letras e palavras e frases. Penso letras, escrevo palavras, respiro, bebo, perco-me nelas. Afogo-me em palavras para esquecer o vazio deixado pela tua ausência, pelo teu lugar vago em mim, abismo profundo para onde resvalo e agonizo. A tua ausência é dura, é fria, é cortante. Dói e tortura. Como pedra, como gelo, como um punhal que se crava fundo na carne, no peito, num golpe desferido por qualquer mão invisível. Sem correr sangue. Não sinto a dor, não vejo sangue, mas vejo a dor que dança à minha volta e sinto o sangue que corre célere nas veias.
Corre a mão sobre o papel, desliza a caneta, escorre a tinta sem atrito. São letras, linhas, curvas, arabescos que talvez signifiquem alguma coisa. Talvez nasçam de uma imagem, ou de duas ou de infinitas imagens coloridas. Talvez sejam fotografias, a preto e branco, a cores, ou polaroids amareladas. Talvez esboços a carvão ou frescos ou quadros pintados a acrílico. Ou pintados a pastel, ou aguarelas. Talvez sejam colagens ou retratos ou paisagens ou quadros abstratos. E sejam pinturas rupestres das cavernas, ou planos em perspectiva.
Talvez as palavras abarquem múltiplos sentidos e imagens e tenham significados ambíguos e difusos. Ou talvez não signifiquem nada. Não foquem nada, não abarquem nada, não contenham nada em si para cá do infinito. E sejam apenas letras, linhas, curvas, arabescos que nascem da ponta da caneta que escorre tinta pelo papel amarelado.

cumplicidade

Eu já senti esse olhar a queimar-me a nuca, a incendiar as covinhas do meu sorriso, a paralisá-lo em momentos que não acabam nunca e que se enchem de uma eternidade de outros momentos que já foram ou que estão ainda para acontecer. Já vi a cor dos teus olhos mas não consigo revesti-lo de palavras. E mesmo que, num instante fugaz de inspiração celeste o conseguisse, talvez mais ninguém, só tu, fosses perceber que aquele era o teu brilho que me queima, me incendeia e paralisa. Nos sonhos todas as cores se transfiguram, e este sonho é só meu.
Olhei-te nos olhos, e vi reflectida neles a minha imagem mais secreta.