9.10.06

O desenhador de mesas II

A minha carteira é a quinta da fila da janela. Nos dias de Inverno, quando chove, as pingas escorrem pelos vidros umas atrás das outras, apressadas para chegar ao parapeito. E eu sou espectadora atenta dessas corridas de gotas de água e torço sempre por uma delas. Pela que serpenteie mais. Muitas vezes, ao escorrer, algumas delas chocam com outras gotas e fundem-se numa gota maior e mais veloz, mais rechonchuda, que acaba sempre por ganhar a corrida e diluir-se na borracha de calaftagem do caixilho vermelho da janela.
Quando chegam os primeiros dias de bom tempo, lá para Fevereiro, na minha carteira espraiam-se contentes os raios de sol mais traquinas. Eu aninho-me com os pés na cadeira da frente, farta de ter as pernas cruzadas, a absorver o calor que pousa directamente no meu lugar. Nessas alturas, desenho soís que não são soís, são círculos infinitos de lápis a carvão, e flores de cinco pétalas, e conto os dias que faltam até chegar a Primavera.
Com o passar das semanas e o suceder das aulas, umas atrás das outras, o intercâmbio artístico dos desenhadores de mesas intensifica-se. Desde mensagens curtas, poemas e risonhos, desenhos rápidos ou muito rebuscados, perspectivas, figuras geométricas, eixos cartesianos, assinaturas ou simplesmente rabiscos impacientes.
Sei que na turma da manhã se senta na minha carteira alguém com uma queda especial para esta arte. Entro na sala esbaforida, porque o toque da campanhia soa sempre cedo aos meus ouvidos. e enquanto abrimos os cadernos e a professora dita o lacónico «lição número...» é procurar atentamente os desenhos inspirados deste artista desconhecido.
Desconfio que deve ser de artes. Tem um traço característico, e naqueles rabisco desconexos que a cada dia disfarçam as imperfeições do contraplacado eu reconheço a impaciência de quem olha para o relógio e não vê os ponteiros a mexer, o desejo de saltar pela janela aberta que dá para o recreio, a ânsia de estar em qualquer outro lugar que não seja a quinta carteira da fila da janela.
E sigo com os dedos os traços do livro aberto à minha frente. Os meus dedos seguem o traço do lápis preto e é como se eu estivesse a ler todos os pensamentos de quem lhes deu vida palpável pela primeira vez. Dou-lhes uma segunda existência, aos traços. Agora vivem carregando a essência dos meus dedos. E são também meus, estes desenhos.
Nos dias em que as mesas são limpas, quase desespero ao pensar que estas relíquias, arrancads a esfregão de arame, se dissolveram em lixívia ou detergente. A minha carteira assim, limpa, nua, despida de esboços é triste e sem graça. Uma tela verde à espera. Num desses dias desenhei um sol que não era sol, era uma espiral infinita de lápis a carvão. Não tinha raios luminosos, mas exalava todo o calor de uma tarde de Verão. Um círculo infinito sobre a superfície da carteira. Carvão sobre o tampo verde. Um sol radioso sobre relva acabada de cortar. O desejo de estar algures longe daqui, de saltar pela janela aberta para o recreio, quando os ponteiros insistem em deslizar a passo lento no mostrador do relógio.

1 Comments:

Blogger dentrodabolinhactimel said...

tenho muitas saudades tuas... leio as tuas palavrase quase que te adivinho, quase que imagino a palavra que se segue... já não és mistério para mim, porque te conheço, porque te sei... porque te adivinho!

tinha mesmo saudades de te ler, de saber que não te vejo, mas sinto como te olho!

adoro te D.Urraca do meu coração!
* um dia, quando formos grandes deveríamos fundir-nos as duas, num livro, ou num texto, numa frase ou mesmo numa palavra, para que todo o mundo soubesse que da nossa fusão nenhuma separação surgirá!******

12:23 da tarde  

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