2.11.07

MAscarada em saltos altos (parte I)

São dez horas e ainda não estou pronta. O relógio de pêndulo do apartamento do lado bate dez vezes. Dez badaladas. Bate alto e preciso, tam...tam...tam... Cada badalada me inunda a mente devagar, e eu fecho os olhos sem pensar em nada. Cada badalada encerra em si dez mistérios. Dez ou mais, ou dez vezes dez ou dez vezes dez vezes dez mistérios. Cada badalada possui em si uma infinita colecção de mistérios intrincados, cantantes no som que ecoa pela sala.
Fecho os olhos e engulo, com um movimento rápido de pescoço, o comprimido para as dores de cabeça. Quando vêm são terríveis, ao ponto de sentir a cabeça a latejar e o mundo inteiro a andar à roda. Enxaquecas dolorosas que herdei da minha mãe. Quando era miúda, havia dias em que não se podia fazer barulho lá em casa e se andava em pezinhos de lã pelo corredor alcatifado. A mãe está com dores de cabeça, dizia o meu pai. E nós já sabíamos que isso significava um dia de silêncio, em que pela frincha debaixo da porta do quarto grande não se via nem uma réstea de luz. Nesses dias, brincávamos baixinho e aquecíamos para o almoço os restos do jantar do dia anterior. A mãe ficava no quarto, debaixo dos cobertores, imóvel como uma estátua. E eu, curiosa, quando a tentava espreitar, saía a correr do quarto com medo do escuro e dos barulhos quebrados da madeira.
Enfio rapidamente a minissaia preta pelas pernas acima e aperto o fecho de lado. Está perro, mas com jeitinho consigo apertá-lo devidamente. O top vermelho sem costas apertado no pescoço e o casaco de malha abotoado. Sento-me na beirinha da cama ainda por fazer e enrolo os collants de rede para os vestir. É a segunda vez que os uso, e ainda estão impecáveis. É bom ter de vez em quando alguma peça de roupa a estrear, nova, ou quase. E com os meus collants de rede preta justos às pernas sinto-me pronta para sair.
Escovo com força o cabelo, ruivo e rebelde e prendo-o com um elástico atrás, na nuca. Olho dos lados, de viés, de perfil, e decido antes soltá-lo em cascata pelos ombros. Só falta o risco preto, levantado no canto do olho, à egípcia, e a carteira pequenina para balançar debaixo do ombro. Não preciso de mais nada... Nem rímel. Nos meus tempos de miúda de liceu todos gostavam dos meus olhos, verdes, olhos de gata, e eu tinha orgulho nas pestanas longas que as raparigas se esforçavam sem sucesso para imitar. Olhos verdes são perigosos, costumava dizer o meu pai. São ciúme, são vingança. Traiçoeiros. Mas ele adorava rever-se nos meus olhos verdes. Perdi há muito a memória fiel desses momentos em que ele me dizia palavras bonitas e em que os meus olhos de felina eram mesmo verdes. Eu enroscava-me, qual gatinha mimada, no seu colo quente, fofo, almofadado, e sentia me protegida. Mas foi há muito, muito, muito tempo.
Pego nas chaves, bato a porta com força e carrego no botão que pisca para chamar o elevador. Não que seja preciso, são só dois andares, mas é quase instintivo. Pegar nas chaves, bater a porta e carregar no botão que pisca. É a canção do sair de casa. Ouço o elevador lá em baixo no rés do chão, a ranger à medida que os cabos velhos começam a funcionar. Aposto que a coscuvilheira da mulher do rés do chão se apressou, como faz sempre, a correr para a janela mal ouviu o elevador a subir.
Perscruto atentamente, uma última vez, a imagem reflectida no espelho do elevador. Sou eu, e até nem estou mal. Mas faz frio, e devia ter trazido outro casaco mais quente. Ou talvez um cachecol.
Tac, tac...ouço os meus tacões na tijoleira da entrada. Gosto de tacões altos, mas não de salto de agulha. A minha mãe tinha uma colecção de sapatos de fazer inveja, que eu adorava experimentar. Até em casa, mesmo de avental, andava de sapatos altos. Nunca a vi de chinelos nem pantufas, nem sequer de botas ou sandálias rasas. Eram sapatos, altos, alguns de biqueira afiada, outros quadrados. Pretos, castanhos, de tiras ou fechados. Sempre elegante. O seu andar vinha sempre acompanhado pela música do tac tac dos tacões. Na tijoleira, na madeira, na pedra da calçada. E eu conhecia o ritmo de subir as escadas com pressa, diferente do andamento de quando vinha a braços com o cesto da roupa passada a ferro, ofegante, e diferente do barulho de quando descia as escadas. Eram passos leves, pequeninos, tal como o pé. Calçava trinta e cinco e dela herdei a pequenez do pé de Cinderela.